Digam o seguinte aos israelitas: Quando um homem tiver um fluxo que sai do corpo, o fluxo é impuro.
Ele ficará impuro por causa do seu fluxo, quer continue, quer fique retido.
Quem tocar no homem que tiver um fluxo lavará as suas roupas e se banhará com água, e ficará impuro até à tarde.
Qualquer pessoa em quem o homem com fluxo tocar sem lavar as mãos, lavará as suas roupas e se banhará com água, e ficará impura até à tarde. – Levítico 15:2,3,7,11
Quando li esse texto da Palavra de Deus, imediatamente pensei em um dos propósitos da Lei, que muitas vezes nos parece incompreensível ou mesmo beirando o absurdo, pelo nosso olhar do século XXI onde possuímos tecnologia e conhecimento, cultura muito diferentes daquele povo de Israel de alguns milênios antes de Cristo para quem foi dirigida a Lei em primeiro lugar, e esse propósito era de separação do povo de um contexto geográfico e cultural extremamente nocivo que era o dos povos ao seu redor em Canaã, povos que adoravam outros deuses e cujas práticas eram não apenas más enquanto formas de exercitar sua fé ou religião, mas que iam de encontro à própria dignidade humana, já que muitas sacrificavam crianças ou mesmo outras pessoas em busca de aplacar a sede de alguma divindade, e que em sua essência causavam prejuízo à própria saúde das pessoas, já que, lembremos, esses povos não possuíam noções muito desenvolvidas de higiene, limpeza, nem acesso a bactericidas ou remédios para combater enfermidades as mais diversas que os assolavam, que poderiam levar até à morte por coisas que hoje consideramos besteiras, mas que sem o tratamento adequado seriam fatais.
Mas voltando à separação, eu fico triste como a religião distorce muitas vezes algo que é bom, algo que é proveitoso, algo que tem um bom propósito, e a torna em algo vil, algo desumano até. Vejamos que a separação que Deus propõe neste texto e em toda a Lei é PARA o Senhor e não DO Senhor, ou seja, é para preservação da vida, para higiene, para saúde, para um bom relacionamento com Deus e com os nossos semelhantes, mas a religião durante anos e anos cria tradições e interpretações restritivas da Lei de modo que a palavra passa a ter maior valor que a essência, que o princípio por trás daquilo que foi ordenado.
Nesse sentido, lembro da vida e ministério de Jesus, que entre outras coisas, desconstruiu diversas fortalezas erguidas pela religião que afastaram o homem do seu Criador. Uma norma que era para saúde virou razão para banimento e ostracismo social, hierarquia, poder e dominação, onde somente alguns poucos teriam o benefício e o privilégio de um relacionamento com Deus, como foi o caso dessa sobre o fluxo de sangue e outras tantas (a sobre a lepra também me vem à mente).
Quando li esse texto pensei naquela mulher cuja história é descrita em Lucas 8:43-48 que diz:
E estava ali certa mulher que havia doze anos vinha sofrendo de uma hemorragia e gastara tudo o que tinha com os médicos; mas ninguém pudera curá-la.
Ela chegou por trás dele, tocou na borda de seu manto, e imediatamente cessou sua hemorragia.
“Quem tocou em mim?”, perguntou Jesus. Como todos negassem, Pedro disse: “Mestre, a multidão se aglomera e te comprime”.
Mas Jesus disse: “Alguém tocou em mim; eu sei que de mim saiu poder”.
Então a mulher, vendo que não conseguiria passar despercebida, veio tremendo e prostrou-se aos seus pés. Na presença de todo o povo contou por que tinha tocado nele e como fora instantaneamente curada.
Então ele lhe disse: “Filha, a sua fé a curou! Vá em paz”. – Lucas 8:43-48
Essa história é narrada por três vezes nos evangelhos, mas gosto da versão de Lucas porque ele traz detalhes que fazem toda a diferença. Primeiro, a mulher, conhecedora da Lei, sabia que não poderia tocar em ninguém. Isso é suficiente para entendermos que a sua vontade de ser curada era tamanha que ela preferiu “transgredir a Lei” para ter restabelecida sua saúde. Ora, um dos propósitos da Lei, como vimos, foi justamente dar saúde e vida, então algo que poderia ser considerado um pecado, um crime até, na verdade pela ótica de Cristo foi valorizado, foi tornado novamente em algo bom, foi retornado ao seu ideal original. Vejam que não havia como ela passar incólume, sem tocar em ninguém, naquela multidão, então ela arriscou até ser reconhecida pela sua doença, correndo o risco de uma punição severa, a fim de tocar em Jesus, a fim de tentar a última esperança de sua vida. Segundo que Jesus novamente revertendo a ordem das coisas, poderia ter ficado calado, a mulher ter seguido sua vida normalmente, agora com a saúde restaurada, mas não, Ele sendo Deus resolve se expor em público, também correndo o risco de ser considerado imundo, já que a Lei afirmava que quem fosse tocado por uma pessoa imunda também ficaria imundo, mas Jesus não liga para a “forma da Lei”, ou melhor, para as tradições humanas que promovem separação, desagregação, Ele mais do que a saúde da mulher Ele desejava restaurar sua dignidade, seu amor próprio, para Deus era mais importante o relacionamento que seria restaurado do que a “mera saúde”, embora esta também fosse muito importante, isso a despeito de Ele mesmo poder ser “diminuído” ou “questionado”. Deus não é um Deus que se prende a formatos ou um Deus a quem possamos enquadrar nesse ou naquele modo de agir ou falar. Deus é um Deus de reconciliação e não de afastamento. Deus toca os intocáveis que são rejeitados pela sociedade, por tudo e por todos, e com eles faz morada, tem comunhão.
Como falei, a vontade de Deus que é boa, agradável e perfeita é para que nos separemos PARA Ele e não Dele, ou seja, nos escondendo de sua face, com vergonha e medo. Deus é um deus de vida, de dignidade, um deus que é bom e não se alegra com a morte, com a doença ou com a separação. Isso vemos, para concluir, em um dos últimos versos desse capítulo 15 de Levítico que diz:
Assim separareis os filhos de Israel das suas imundícias, para que não morram nas suas imundícias, contaminando o meu tabernáculo, que está no meio deles. – Levítico 15:31
Deus sabia, em sua onisciência, que muitas práticas são ruins por afetarem nossa saúde e bem estar, que acabam por prejudicar nosso relacionamento consigo e em comunidade. A minha oração hoje é para que lembremos disso e de tudo que vimos acima, não esquecendo dos princípios por trás da Lei, que a religião não acabe nos afastando de Deus ao invés de nos aproximar Dele, pois os princípios, em sua etimologia, significam o que é principal, fundamental, o que vem antes de tudo em grau de importância e ordem.
Deus nos abençoe.