Último post da série sobre os trabalhos de Sociologia.
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Fichamento do Capítulo 6 do livro Perspectivas Sociológicas. BERGER, P. L. Petrópolis, Vozes, 1976.
Este capítulo começa com uma discussão sobre a liberdade. A liberdade, embora “possa ser por nós experimentada como uma certeza, juntamente com outras certezas empíricas, não é passível de demonstração por quaisquer métodos científicos” (pg. 137, 2º §), e não pode ser demonstrada pela razão, segundo Kant. A discussão prossegue afirmando que a liberdade e a causalidade não são opostos lógicos, apenas não possuem referência comum, não podendo se estabelecer a realidade de uma através da demonstração da realidade da outra. Nesse sentido, o autor destaca a problemática das ciências sociais em tentar analisar um fato social buscando-se as causas originadoras, e sendo impossível assim perceber ou se chegar à liberdade usando os métodos tradicionais de análise científica. Para fechar o argumento inicial, o autor afirma que não pretende ater-se ao cientificismo que exclui a liberdade da discussão, e prefere seguir outro rumo, propondo, dentro do modelo de existência humana segundo a ótica da perspectiva sociológica, que os controles sociais não são tão infalíveis como leva a crer os capítulos anteriores, e em segundo lugar, ele muda o próprio ponto de referência, do método científico estrito àquele mais geral que admite a realidade como pano de fundo para os fatos sociais.
Iniciando o ponto um, o autor argumenta que visto que a nossa própria cooperação é necessária para levar-nos às prisões sociais, na maioria dos casos, as pressões internas ou externas da sociedade são co-definidas por nós mesmos. Continua citando Durkheim, o qual ressalta as características extrínsecas e materiais da realidade social, em comparação à Weber, que leva em consideração questões de caráter subjetivo, o que é particularmente importante nesse caso, onde mesmo os atores agindo de uma maneira determinada, o resultado pode sair bastante diferente do esperado. Segundo essa concepção, por exemplo, um indivíduo de comportamento dissonante poderá viver à margem da sociedade, mas continuará vivendo, o que demonstra falhas no processo coercitivo já visto. Além disso, podem ocorrer casos onde o conjunto de opiniões discordantes passa a se avolumar e confluir em um grupo significativo de pessoas, onde pelo menos nesse grupo essa discordância será levada em consideração.
É então analisado o fenômeno do carisma, pelo qual esse processo de dissonância pode levar a substituição dos pressupostos por novas concepções e interpretações da realidade. É interessante notar, como continua o autor citando Weber, que os movimentos carismáticos possuem caráter transitório, onde a radical ruptura original passa a se reintegrar com a sociedade, assumindo um caráter mais moderado, e com o ressurgimento dos antigos valores. Essa discussão demonstra ainda que as mudanças ocorrem, ainda que não obtenham os resultados originalmente propostos, que os resultados levem tempo para serem vistos, e que mesmo tentativas de contra-reformas normalmente não são bem sucedidas, o que se resume e deve-se à possibilidade de “retirarmos nossa cooperação com a História”.
Com base no exemplo citado, podemos entender as sociedades manifestam mecanismos de controle que foram criados por homens, e modificados, ainda hoje, por homens. Nesse sentido, as visões de Durkheim e Weber não se contradizem, apenas se opõem por refletirem diferentes interpretações de aspectos diversos da realidade. Nisso se constitui o aparente paradoxo da existência humana, onde a sociedade que nos define é ao mesmo tempo definida por nós.
“Segue-se então que os sistemas de controle têm necessidade constante de confirmação e reconfirmação por parte dos controlados” (pg. 145, continuação do § anterior). É possível ir contra esse processo de várias formas, dentre as quais destacam-se a transformação, o alheamento e a manipulação.
Na transformação, cabe ressaltar a importância do não reconhecimento e da contra definição das normas sociais. O alheamento consiste, caso não seja possível a transformação social, no apartamento da mesma. Assim, caso várias pessoas concordem na saída do meio social, criando uma verdadeira contracultura, ou submundo, a carga emocional desse distanciamento poderá ser minimizada. Nesse sentido, “a anonimidade e liberdade de movimento da moderna vida urbana facilitam bastante a construção de tais submundos” (pg. 148, 1º §). A manipulação, por sua vez, não tenta transformar, nem ainda fugir dos controles, mas usar o sistema contra ele mesmo, ou seja, distorcer as normas vigentes de maneiras inusitadas, inesperadas pelos seus “operadores de direito”, como por exemplo um preso que trabalha na lavanderia do presídio e usa as máquinas de lavar para uso pessoal, lavando sua própria roupa suja, no exemplo citado.
Além disso, Goffman criou um conceito semelhante aos acima, de “distanciamento do papel”, onde os papéis sociais que desempenhamos passam a ser vividos de maneira intencionalmente fraudulenta, ou seja, o ator social conscientemente delibera por interpretar o papel, mas procura dissociar-se mentalmente daquilo que ele representa, o que foge do normal social, onde os papéis são vividos sem reflexão, de maneira automática.
O autor apresenta então o conceito de “êxtase”, que trata-se não de algo místico, mas de dar um passo para fora, sair, das rotinas normais da sociedade, o que reflete-se, por exemplo, no processo de alheamento já discutido. “Em outras palavras, o ‘êxtase’ transforma a consciência que se tem da sociedade, fazendo com que determinação se converta em possibilidade” (pg. 152, 1º §). Assim, o que antes é algo apenas mental, tende a tornar-se ação, o que é deveras perigoso do ponto de vista dos guardiões oficiais da ordem.
Vemos então que existem certos tipos de treinamento e atividades que são capazes de levar a esse “êxtase”, ocorrendo com mais freqüência, por exemplo, em culturas urbanas comparativamente às rurais, e nesta, nas culturas periféricas mais do que nas centrais. A localização social do fenômeno indica que para que haja a revolta social, é preciso que algo seja preexistente, ou seja, toda libertação de papéis sociais ocorre nos limites impostos anteriormente pela mesma sociedade.
Todo esse pano de fundo foi utilizado pelo autor para se chegar a uma terceira via que representa a sociedade não como uma prisão ou teatro de fantoches como definido em capítulos anteriores, a qual corresponde a um palco com atores vivos, o que não substitui os conceitos anteriores, apenas acrescenta aos mesmos as opções que possuímos a todo o contexto que nos cerca. “Se a realidade social é criada por convenções, certamente poderá também ser modificada por convenções. Assim, o modelo teatral nos abre uma saída do rígido determinismo para o qual o pensamento sociológico nos levara de início” (pg. 154, 1º §).
A teoria de sensibilidade do sociólogo alemão Georg Simmel é apresentada, a qual argumenta que a sociabilidade é a forma lúdica de interação social, demonstrada facilmente numa festa, onde as situações sociais corriqueiras despem-se de seus formalismos. Essa teoria encontra respaldo no contexto estudado na medida em que comparamos o processo de aprendizado do ser social em geral com a simulação que ela proporciona. Vemos assim que há uma ligação entre “as graças sociais” e as habilidade sociais em geral, sendo que as últimas normalmente são aprendidas através das primeiras.
Continuando, o autor examina a teoria das instituições de Gehlen, segundo o qual as instituições são meios de canalização da conduta humana, semelhantes aos instintos para os animais, somente com a diferença em que o animal, se refletisse sobre seus instintos chegaria à conclusão de que obedece por que não tem escolha, o que seria verdade, enquanto o homem se engana ao afirmar o mesmo, sendo que ele tem essa opção, ainda que as conseqüências lhe limitem nesse sentido.
A seguir vemos o conceito de má fé por Jean-Paul Sartre, onde diferentemente do senso comum, ela é definida como “simular que alguma coisa é necessária, quando na verdade é voluntária” (pg. 159, continuação do § anterior), o que no contexto sociológico significa que a simples possibilidade da sua existência implica no reconhecimento da liberdade humana, onde o homem é livre e por meio da “má fé” busca esse escapismo. Assim, novamente trazendo à realidade sociológica, os papéis que a sociedade nos apresenta trazem consigo cada um a oportunidade e possibilidade de desculpa por meio desse instituto, uma vez que ao homem sempre cabe a livre escolha do escape.
Na verdade, segundo o autor, a má fé é usada em sentido mais amplo para proporcionar ao indivíduo um mecanismo através do qual ele pode ocultar a si mesmo sua própria liberdade. No entanto, como segue, o que sugeriria uma conspiração, não é mais do que uma expressão da possibilidade da própria liberdade. Assim, toda instituição social pode servir como instrumento de alienação da liberdade coletiva, mas também é um escudo que protege as próprias ações do homem livre.
É descrito a seguir o conceito de homem não enquanto indivíduo mas enquanto ser coletivo e impessoal, descrito no alemão “das Man”, conceito oriundo do sistema de pensamento de Heidegger, onde essa generalidade esconde do homem os terrores que teria que enfrentar como indivíduo. Sobre isso o autor fala: “sob o aspecto de ‘má fé’, vimos a sociedade como um mecanismo para fornecer álibis que eximam uma pessoa de alcançar a liberdade. Sob o aspecto do Man, vimos a sociedade como uma defesa contra o terror. A sociedade nos oferece estruturas consideradas óbvias […] dentro das quais, enquanto seguirmos as regras, estamos protegidos dos terrores de nossa condição.” (pg. 163, 1º §), e conclui afirmando que essas estruturas nos fornecem rotinas e rituais pelos quais esses terrores são organizados de maneira tal que possamos enfrentá-los calmamente. Esse Man constitui-se, em última análise e segundo o autor, em uma conspiração visando levar-nos a viver nossas vidas de maneira inautêntica, ainda que essa fraudulência seja o que nos dá sentido à vida.
Concluindo o autor traz novamente o conceito de “êxtase”, segundo o qual é o ato de sair à noite do homem social, viva ele uma vida considerada autêntica ou não. No entanto, a liberdade desse homem pressupõe uma liberação de consciência, de maneira que as possibilidades de liberdade sejam percebidas para além do “mundo aprovado” descrito pelo autor e definido pela sociedade como única solução possível.