Sobre a Maldição Hereditária

Na comunidade local que frequento, Igreja de Cristo Salinas, possuímos grupos de estudo da Palavra (a que chamamos “pequenos grupos”, outros lugares chamam “células” ou “grupos de crescimento”, por exemplo), sendo que Talita e eu conduzimos ou facilitamos um deles. Durante o estudo da Palavra, há certos temas um pouco polêmicos que são recorrentes, como a predestinação, a possibilidade da perda da salvação, a continuidade ou não dos dons sobrenaturais do Espírito, e a maldição hereditária.

A maldição hereditária, como outras heresias oriundas do movimento neopentecostal, e já deixo claro que se trata de heresia, decorre de má interpretação ou má compreensão de certos textos bíblicos.

Mas, antes de avaliarmos um ou alguns desses textos que supostamente dariam fundamento teórico para essa doutrina, vamos entender o que se trata a maldição hereditária, resumindo como aqueles que nela acreditam a descrevem ou explicam. Consultando rapidamente a Internet, vi duas definições que me chamaram a atenção:

1: “…problemas que se arrastam entre gerações e que, por mais que a pessoa se esforce, eles parecem não se resolver”;
2: “Maldição hereditária é a ideia de que uma pessoa é penalizada pelas ações de suas gerações passadas”.

Mas, uma definição mais precisa eu tirei de um estudo do sítio “Coalizão pelo Evangelho”, e diz o seguinte:

“As maldições hereditária são conhecidas como sendo os pecados, ou consequências dos pecados, que herdamos de nossos pais. Isto é, que nós, como filhos, podemos estar praticando um pecado que veio até nós como um tipo de vínculo espiritual, ou que estamos sofrendo os efeitos de um pecado como herança de nossos pais. Essas consequências também podem vir na forma de vícios ou vários tipos de doença. […] Eles ensinam que esta pode ser a razão pela qual um pecado ou um padrão pecaminoso persista em suas vidas. Eles também ensinam que problemas constantes, doenças frequentes e crises financeiras permanentes podem ser expressões de uma maldição hereditária.

Dito de forma simples, uma maldição hereditária aponta para as consequências que podemos estar pagando pelos pecados de um antepassado.

Se esse for o caso, então o crente não será capaz de se livrar dessa condição a menos que algum tipo de libertação seja feita. Ou seja, uma sessão de oração, imposição de mãos, ou até mesmo uma confissão por parte da pessoa afetada, para quebrar o vínculo. Em alguns casos, essas libertações, que podem durar várias horas, ocorrem nos templos ao fim dos cultos dominicais, em retiros espirituais ou em lares como parte de um aconselhamento.”

Um dos textos bíblicos mal usados como amparo para essa teologia é aquele de Êxodo 20:5 que diz:
“Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.”

Vale salientar que essa teologia não é exatamente nova, sendo que em Israel nos tempos bíblicos e até os dias de Jesus, muitos judeus criam em alguma variante dessa doutrina.

Mas, de maneira a desmistificar o real significado desse texto, devemos verificar o seu contexto e compararmos a outros textos que a própria Escritura oferece para iluminar aquilo que pode trazer dúvida para o leitor mais apressado.

Em primeiro lugar, devemos deixar claro que NÃO é o diabo quem amaldiçoa o homem, então a ideia de que haja demônios que nos acompanham por gerações oferecendo tentações particulares ao avô, ao pai, ao filho etc. não é bíblica. Não há textos que suportem isso e, de fato, quem amaldiçoa alguém é o próprio Deus, não por um pecado específico, mas por nossa condição de pecadores, descendentes de Adão, o que nos torna malditos de Deus, cf. Gálatas 3:10, Romanos 5:12-17, entre outros textos.

Em segundo lugar, devemos perceber que o contexto imediato dessa aparente “maldição hereditária” de Deus que aparece em Êxodo 20, está no pecado específico da idolatria, e, não apenas isso, vejamos com calma que Deus, como Deus “zeloso”, ou seja, que sente “ciúmes”, não trata com desprezo aquele que, sozinho ou coletivamente, de maneira pessoal ou enquanto família, pratica a idolatria, ou seja, acrescenta algo a mais em seu coração e como fruto e destinatário de seu louvor e adoração à pessoa de Deus. Não vou me detalhar sobre isso, mas o texto diz claramente que Deus visita a iniquidade geracional, ou seja, aquela que persiste de pais para filhos e assim sucessivamente e isso é o ponto chave da correta avaliação desse texto.

Deus não visita com castigo e “maldição” pessoas inocentes que estejam numa prática sadia e correta de adoração. Deus visita a iniquidade daqueles que o odeiam, como diz o texto bíblico, e aqui é preciso entender o poder da influência da criação que alguém recebe.

Se eu, como pai, ensino a meu filho a amar a Deus e adorá-lo, dou bom testemunho, a tendência é que ele continue esse comportamento em sua vida. O contrário também é verdade, ou seja, se eu, por exemplo, me entrego à bebida e bato em minha mulher, mesmo inconcientemente os valores que estarei transmitindo serão maus, e a possibilidade dele também um dia se interessar pela bebida, e quem sabe acabar repetir os padrões de violência contra sua futura esposa, será grande.

Repetição de padrões, isso é diferente de tentações ou pecados geracionais.

Caminhando para a conclusão, como eu falei, essa ideia, contudo, não é nova, mas também não é nova sua refutação, tanto no antigo, quanto no novo testamento. É o que vemos, por exemplo, no texto de Ezequiel 18:2-4 (na verdade todo o capítulo fala sobre isso):

“Que pensais, vós, os que usais esta parábola sobre a terra de Israel, dizendo: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram?
Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que nunca mais direis esta parábola em Israel.
Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá.”

Vejam bem: os filhos só recebem os mesmos castigos de seus pais se continuarem na prática dos mesmos pecados.

E, por fim, o texto de João 9:1-3:

“Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus.”

Aqui, Jesus deixa claro que, para além do absurdo lógico contido na pergunta dos discípulos, qual seja alguém ter pecado antes mesmo de ter nascido (e eu não estou falando da natureza pecadora recebida de Adão, mas de pecados voluntários) para que ao nascer essa pessoa recebesse como castigo a deficiência física (era essa a “superstição” da época, que determinadas doenças, especialmente as mais graves, seriam castigo de Deus por pecados cometidos, e eu não vou entrar nesse mérito aqui), na verdade o que alguns consideram como “maldição hereditária”, como uma doença grave, pode ser manifestação da soberana vontade de Deus para demonstrar seu poder, e para requerer de nós, seu povo, misericórdia e compaixão por aqueles que sofrem.

Finalizando, entendo que muitos utilizam de doutrinas como a da maldição hereditária para tentar retirar de sobre seus ombros a culpa e a responsabilidade das consequências de seus atos, de seus pecados individuais, tentando transferi-las ao diabo, dando-lhe mais poder do que de fato possui, ou quem sabe até mesmo culpando a Deus, como desde Adão fazemos, mas sem reconhecer seu atributo da soberania.

Assim fica fácil culpar o “capiroto”, por exemplo, pela pobreza que decorre não de maldição, ou como castigo “sobrenatural”, mas da lei da semeadura, ou seja, a pessoa que é displicente e perdulária passará necessidade, e da mesma maneira para tantas outras aplicações para as quais utilizam de desculpas semelhantes a essa.

A minha oração, hoje, então, é para que nós possamos reconhecer a nossa parcela de culpa naqueles pecados que nós temos cometido e colhido suas consequências; que paremos de dar maus exemplos para nossos filhos, e depois que eles perpetuarem esses comportamentos ruins, alegarmos que era “maldição hereditária”; e, finalmente, reconheçamos que Cristo é poderoso para quebrar toda e qualquer maldição, não por meio de um ritual específico ou pela mediação de alguém em particular, mas por meio do arrependimento sincero e confissão de pecados, que nos levam a abandonar os maus caminhos que seguiamos, passando a colher, nós e as gerações vindouras, os bons frutos dessa conversão.

Deus nos abençoe.